Por quem bimbalham os sinos?
Gosto de pregar no meu blog uma peça de 1º de abril que começa assim: Robert Parker morreu na Patagônia. Depois do susto inicial, explico: o famoso bandoleiro Butch Cassidy e seu companheiro Sundance Kid morreram lá, depois de roubarem bancos. O verdadeiro nome de Butch era Robert Parker. Já seu homônimo dos vinhos passa bem e continua morando em Baltimore, US$ 15 milhões mais rico. Só não é mais o crítico mais poderoso do mundo. Vendeu esta semana parte de sua publicação The Wine Advocate pelo valor anunciado.
Vai continuar editor, cobrindo Bordeaux e Rhône para o site e a newsletter, mas, aos 65 anos, seu declínio de influência é notável. E quem então é o CMPM (crítico mais poderoso do mundo) atual? Ninguém. Não haverá sucessor. Simplesmente porque o mundo mudou, se estilhaçou em microinfluências.
‘RP’. Seu sistema de pontuação simplificou o entendimento do vinho. Acontece que a graça do vinho está em ser complicado.
Quando Parker, bem intencionado e influenciado por seu ídolo, Ralph Nader, começou a publicação, não havia internet, os americanos começavam a beber vinho a sério e ele queria defender o consumidor, ensinando o que era válido comprar, explicando para o ávido mas neófito comprador de garrafas o que devia beber. Foi o homem certo no momento perfeito. De uma simples ideia, tocada com a mulher, feita com esforço, garrafas compradas com seu salário de advogado, impressos meio de fundo de quintal e distribuição atrapalhada, ganhou um poder extraordinário. Passou a determinar o gosto do maior mercado bebedor do mundo. Mais ou menos como em Guerra nas Estrelas, começou Jedi a acabou Darth Vader.
Seu grande tropeço, e a herança maldita que vai deixar por alguns anos, é o malfadado sistema de pontos. Para facilitar a vida das pessoas, passou a dar notas aos vinhos, numa escala de 90 a 100. De boa-fé. Ficava mais simples para Joe, o encanador, e Bill, o novo-rico, entenderem que vinho era melhor: o que tinha mais pontos, assim simples. Mas vinho é uma coisa deliciosamente complexa, um desafio para a vida toda. Sua graça é justamente ser complicado.
A brilhante ideia parkeriana destruiu o desafio. Vinho bom passou a ser o que tem de 90 pontos para cima, os de menos de 90 ninguém quer. Até aqui funciona assim: importadoras alardeiam os de 95 pontos RP e escondem os de 88, sem mencioná-los. Alguém (acho que Hugh Johnson) já mostrou a falha: na verdade, há apenas duas notas no sistema – acima e abaixo de 90.
Já tomei vinhos fantásticos que tinham pontuação baixa. E já tomei belas porcarias com 100 pontos (sim, 100 pontos!). Por que? Porque Parker não sabe nada? Não: porque o gosto dele é diferente do meu, do seu e do de d. Maria, que só quer um vinho gostoso para a pizza de domingo.
E também por ter várias bocas degustando em seu nome.
Os vinhos argentinos e espanhóis eram provados e pontuados pelo notório dr. Jay Miller, psicólogo amigo de Parker, que se envolveu numa falcatrua de venda de visitas para provar vinhos, importante fratura na confiabilidade da coisa, ano passado. Nem todos os pontos Parker são dados por ele, nem todos os vinhos ele provou de língua própria.
A tirania dos pontos virou maldição. E o gosto de Parker começou a determinar, para produtores mais venais, o sabor de seus vinhos, feitos para agradá-lo e ganhar alta pontuação. Mas isto não é um necrológio, embora eu espere que o sistema de pontos desapareça aos poucos.
Não haverá outro Parker. Seria um chinês, de um mercado crescente de vinhos, e influenciaria o Oriente. Mas as condições não são iguais e ele não teria o impacto global que Parker teve. RP foi um acidente do século 20, irrepetível.
É preciso dizer que o legado de Parker é positivo. Seu livro sobre Bordeaux é imprescindível. Ele fez uma ponte importante entre o caipira americano inseguro e preconceituoso contra tudo de fora e a sofisticação esnobe dos grandes châteaux. Deu a deixa para que se bebesse mais e provavelmente salvou muito vinicultor europeu da falência, permitindo que se vendesse em volume enorme para os EUA. Mas já é mais que hora de as pessoas simplesmente abrirem garrafas, provarem e decidirem se gostam ou não, sem olhar quantos pontos um cara que mora em Baltimore atribuiu àquelas safras.
Por Luiz Horta
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