Enólogo denuncia a confusão entre terroir e sujeira e diz que hoje o consumidor quer saber como é feita sua bebida
Os franceses confundem falta de higiene com terroir. Eles sempre disfarçaram a contaminação microbiológica chamando-a de terroir. Mas o consumidor já não quer saber disso. A afirmação polêmica poderia parecer pura provocação de um enólogo americano - não fosse o enólogo americano em questão o célebre Paul Hobbs, um dos grandes da atualidade e defensor declarado dos "vinhos limpos". Esse foi um dos temas da entrevista exclusiva concedida ao Paladar, em recente visita a São Paulo. Hobbs apontou tendências, chamou a atenção para novas regiões vinícolas que merecem destaque e falou sobre os desafios de fazer vinhos numa época de enorme oferta.
Ele já foi comparado a Steve Jobs pela revista Forbes. E não se constrange com isso: gosta de ser visto como um criador detalhista. De fato, assim como o célebre fundador da Apple fez no mundo da tecnologia, não é exagero dizer que Paul Hobbs revolucionou o mundo dos vinhos.
Respirando os ares criativos e empreendedores da Califórnia - Estado que escolheu para viver, embora tenha nascido em Nova York -, mostrou que é possível fazer vinho de ótima qualidade sem seguir cegamente o velho modelo europeu.
Filho de um pequeno fazendeiro, começou arrendando vinhedos e vinícolas de outros proprietários. E fez isso por muitos e muitos anos. Foi a campo trabalhar diretamente com os pés de uva, coisa que produtores de vinho faziam apenas ocasionalmente, e é um dos responsáveis pelo boom do vinho californiano.
Foi escolhido personalidade do ano por Robert Parker duas vezes, e seus rótulos já levaram a pontuação máxima do crítico - que, segundo Hobbs, foi mal compreendido pelo mundo do vinho e hoje não tem mais a relevância exagerada que já teve.
Mas talvez seu maior feito tenha sido colocar a Argentina no mapa dos produtores de vinho. Paul Hobbs enxergou o potencial da Malbec lá e luta para que o vinho argentino seja reconhecido como tão importante quanto um bordeaux.
Seu grande desafio pessoal tem sido produzir vinhos em lugares em princípio impossíveis. Começar do zero até extrair um vinho de alta categoria de regiões como a Armênia, país que abriga um de seus mais recentes investimentos.
Sem se amarrar a cânones, mas também sem se deixar levar por modismos, ele aposta na qualidade da uva como tendência. Sim, uma aposta um tanto óbvia, mas que faz sentido quando se ouve os argumentos de Hobbs sobre a forma desleixada com que tradicionais produtores franceses tratam a fruta, "confundindo falta de higiene com terroir". Porque para Hobbs, não há mais volta: também o mundo do vinho vai se importar não só com a qualidade da bebida, mas com o modo como ela foi feita - se é limpa, orgânica, biodinâmica.
Que história é essa de que os franceses confundem falta de higiene com terroir?
Muitos vinhos franceses são feitos em adegas contaminadas e então dizem que isso é terroir. Volte a 1982. Muitos daqueles vinhos de Bordeaux não eram bons... Foram destruídos por brettanomyces. Você não conseguia sentir nada da fruta, só o efeito do fungo que provoca uma doença e deixa o vinho com gosto de estábulo, suor de cavalo... Hoje, produtores estão entendendo que as pessoas querem fruta - a fruta está se tornando determinante, enfim, não o que acontece na vinícola.
O que é um vinho limpo?
Sem contaminação microbiológica. Para mim, a vinícola devia ser como uma grande cozinha - um lugar limpo e organizado. Até hoje você encontra "cozinhas" muito sujas na França. Em Cahors, onde trabalho, é impressionante a falta de higiene. Só que isso não vai mais ser aceitável. Consumidores não querem, querem vinhos limpos e ao mesmo tempo complexos. Esse é o novo grande desafio para o produtor: como fazer um vinho complexo sem que haja contaminação microbiológica.
O que as pessoas querem beber hoje?
Produtos honestos - bem feitos e naturais. Querem beber qualidade. Não só que tenha um bom sabor, mas que tenha sido feito direito. Em termos de estilo, vivemos uma mudança; essa coisa dos vinhos potentes foi longe demais e agora as pessoas não querem mais vinhos pesados. Querem complexidade, corpo, intensidade e também elegância, finesse.
Mais Robinson do que Parker... Mais elegância, menos potência?
Acho que não. As pessoas leram Parker de modo equivocado, ele adora elegância, finesse, mas também concentração e acidez. A indústria cometeu um erro ao tentar satisfazer um gosto que nem era o dele. Só que não vamos voltar a um momento pré-Parker. Porque Parker fez bem aos vinhos - os europeus estavam colhendo as uvas muito cedo, você não podia beber antes de dez anos, os taninos não estavam maduros.
Quais as novas regiões vinícolas para se prestar atenção?
Particularmente, estou interessado em Cahors, na França, uma região que ficou dormindo por muitos anos. Estou também trabalhando na Armênia. É um projeto pequeno do qual sou sócio, 18 hectares, estamos plantando. Vai levar dez anos para se fazer vinho ali.
Você geralmente não compra os vinhedos. Por que comprou na Armênia?
Não tínhamos escolha. Estamos saindo do zero. Quando cheguei à Argentina havia uma indústria. Ruim, mas havia. Na Armênia não há.
Se fosse começar de novo, faria do mesmo jeito, sem comprar vinhedos?
Eu só fiz assim porque não tinha dinheiro... Se pudesse teria comprado. Quando não tinha meu vinhedo era muito difícil. Na Argentina, alugamos uma vinícola. O dono não queria isso, ou aquilo, não concordava com o que eu sugeria... As pessoas não sabiam quem era Paul Hobbs. Hoje é fácil, mas antes não era assim. E também, no início dos 1990, enólogos eram raramente vistos nos vinhedos. Fui um dos primeiros a fazer isso.
Nos últimos 30 anos, o mundo do vinho mudou muito. Para um enólogo, qual foi a mudança mais significativa?
(Pede tempo para pensar.) Acho que é o foco no vinhedo. Na Califórnia, no Novo Mundo, o foco mudou para o vinhedo. Antes era na tecnologia e tinha de ser assim. Mas agora é na qualidade da uva. Nos anos 1980, 1990 só se falava em tecnologia. Mas é a qualidade da matéria-prima que importa.
Ainda há lugar para modas de uvas especificas?
As modas vêm e vão. Agora Moscatel está em baixa. Mas daqui a pouco pode subir. Sempre haverá tendências. Mas não sou um produtor de moda. Gosto dos clássicos.
Qual é o papel dos críticos de vinho hoje?
Não é fascinante como o mundo muda? Hoje é muito mais difuso, antes era fácil: faça Parker feliz e não se preocupe com mais nada... Quem vai liderar isso? Não sei. Acho que escritores locais vão ganhar importância. Blogs? Não têm significância, não presto atenção. Não haverá um novo Parker, o mundo não precisa mais de alguém como ele.
Mas nunca foi tão difícil escolher um vinho, é tanta oferta... Quem pode ajudar o consumidor na escolha?
Acho que não será uma voz única. Aliás esse foi o erro de Parker, ele não era capaz de provar tudo e começou a delegar a outros críticos. Spectator, Decanter, publicações como essas vão continuar. Mas vai ter mais boca a boca. As pessoas viajam, provam coisas diferentes, formam suas opiniões. Estamos num momento de transição, não sei de onde as pessoas vão tirar informação
Quem são os novos enólogos que merecem atenção?
Sou relutante em apontar nomes, mas posso mencionar Bibiana Gonzáles, que trabalha com Pahlmeyer, na Califórnia. Mas há uma geração boa vindo por aí. A diferença é que eles não querem só trabalhar o tempo todo.
E os desafios para o futuro?
Acho que o trabalho é um ponto crucial. A produção de vinhos é um ramo muito intensivo em trabalho, e me pergunto de onde virá a mão de obra nos próximos anos. A tecnologia ainda está longe de ter o mesmo resultado de, por exemplo, uma colheita manual. Daqui a 50 anos, talvez restem apenas alguns pequenos produtores que façam tudo à mão, como eu faço.
Estadão.com.br
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