Semana passada tive mais uma vez o privilégio de harmonizar um jantar elaborado pela famosa chef e minha querida amiga Flávia Quaresma, para o pré-lançamento de um belíssimo automóvel da Fiat. Como não poderia deixar de ser, os vinhos tinham que ser todos italianos e à altura do evento. Dentre os ilustres participantes, um era a Jornalista e aspirante a escritora (como ela se auto denomina), Glória Paiva, que nas horas vagas (poucas), gosta de cozinhar e dançar, e tem um blog intitulado "Comer e andar por aí". Glória documentou e fotografou tudo e nos brinda com a excelente matéria publicada no seu blog ( http://comereandar.blogspot.com), que reproduzo a seguir:
"Na última semana, por um destes tropeços deliciosos do destino - a que chamamos de sorte - tive a oportunidade de participar de um jantar inesquecível e de apurar um pouquinho mais meu paladar para comidas e vinhos italianos. É que, trabalhando em um evento em Campinas, acabei por sentar-me à mesa com o sommelier Paulo Nicolay e a chef Flávia Quaresma, para uma sinfonia de pratos harmonizados com garrafas italianas que não encontramos por aí todos os dias. Melhor dizendo: a chef, infelizmente, não conseguiu sentar-se assim, no sentido da palavra, e relaxar, ocupada que estava com a orquestragem de delícias que iam e vinham da cozinha. Ossos do ofício.
Paulo, por sua vez, sentou-se conosco e foi destilando boas histórias a cada encher de taças. Ele, descobri, é um dos corajosos que deixou a sisudez de uma profissão inicialmente escolhida para dar voz a um chamado do coração - assim passou de Engenheiro a sommelier, na década de 90, quando o termo sommelier sequer era conhecido.
O fato é que refastelei-me e fui dormir macia e alegre, depois de a alma flutuar por tantos aromas e sabores combinados e inesperados. Desculpem o excesso de poesia, mas uma boa comida não é quase isso? Descrevo aqui a sequência do que foi.
Começamos por um Amuse-bouche de foie gras com pera ao balsâmico e avelãs. O patê de foie, acompanhado de finas fatias de pera cozida e a acidez do balsâmico criaram uma combinação delicada e surpreendente, se nos arriscássemos a buscar um pouquinho das gotas escuras no canto do prato.
Isto foi harmonizado com um espumante Franciacorta Cuvée Prestige Brut, da região da Lombardia.
Passamos às entradas de fato com dois pratos: Cappuccino de lagostins com letilhas francesas du Puy e um peixe Vermelho sobre legumes com limão confit, molho ao anis e compota de cebolas e azeitonas. O cappuccino, na verdade um creme bem aerado, me pegou de surpresa. Não sou uma apaixonada por frutos do mar - prefiro as carnes -, mas o lagostin, que "tomava sol em Copacabana, com as perninhas cruzadas", como Flávia descreveu meu prato, estava uma delícia. As lentilhas francesas, tenras, combinaram perfeitamente. E o Vermelho realmente me trouxe uma grande dúvida: teria sido ele o preferido da noite? Recém chegado dos barcos de Santos, o Vermelho macio, com um toque azedinho do limão confit e a combinação do legumes cozidos ficou tão suave e fresco que eu poderia comer um peixe inteiro.
Tudo isso foi combinado com um Rossj-Bass Langhe Chardonnay/Sauvignon Blanc 2008 Angelo Gaja, que Paulo descreveu como uma raridade, uma combinação fora de série no mundo. Segundo ele, "rossj bass" quer dizer algo como "terroir", "da terra", no dialeto de Langhe. Na minha opinião, vinhos brancos gelados são sempre divertidos. E a ousada mistura de uvas Chardonnay com Sauvignon, que os franceses avaliam como uma "heresia", virou uma festa só.
Os pratos principais começaram com um Agnolotti recheado de gorgonzola com ameixa preta e molho de vinho do Porto com especiarias. Por cima, uma "folha seca" de presunto de parma crocante, que Paulo me ensinou a fazer no microondas mesmo. Vou experimentar. "Dá para quebrar e jogar por cima do risoto", sugeriu ele, despertando todas as minhas ideias gordinhas. Um sabor muito intenso e original, o do agnolotti, que foi harmonizado com um vinho igualmente sério: o Barolo Dagromis 2003, também do afortunado Angelo Gaja, vindo do Piemonte. É um vinho de respeito, contou-me o sommelier, digno da cidade de Barolo e produzido com a uva Nebiolo, chamada assim por causa da nebia, neblina do lugar.
O segundo prato principal escolhido por Flávia foi um Stracotto de cordeiro com risotto de açafrão - carne de cordeiro cozida em um molho espesso até desfiar, de tão macia, sobre um risotto amarelo e saborosíssimo. Quase me esqueci de tirar a foto quando o prato chegou. Logo vi que aquilo mexia com meus instintos mais elementares, remontando às origens de cozinheiras gordas portuguesas, fazedoras de grandes assados e comida simples, temperada e colorida com ervas. "Não adianta", pensei. Adoro experimentar novidades, mas este meu lado é muito acentuado. Isto é comfort food em sua totalidade.
Tão simples e alegre quanto, o vinho acompanhante deste prato foi o Brunello de Montalcino 2003 - Caparzo, da Toscana - um sucesso italiano muitíssimo apropriado para o prato da mamma.
A sinfonia estava quase completa. Aí tivemos uma "prè-dessert", um "docinho para abrir o apetite para a sobremesa": Panna cotta com frutas secas ao molho de vinho Marsala e pignolis por cima. Delirei. Leve, doce, com um tipo de geléia de frutas e a cobertura de pinholes macios. Paulo ficou tão impressionado com a minha alegria pela Panna Cotta, que até me deu o copinho dele. Juro que tentei recusar, é claro que aquilo não era sinal da boa educação que minha mãe me deu.
Mas ele insistiu e disse que estava reservando espaço para a sobremesa de fato: Salame de chocolate com castanhas brasileiras e compota de cupuaçu.
Comi as duas Panna Cottas e provei do salame, uma sobremesa robusta, com sabor do puro chocolate e o atrevimento do cupuaçu, digna daquelas mesas de comensais glutões.
Os doces foram harmonizados com o Marsala Superiore Ambra Dolce - Lombardo, da região da Sicília. Suspeito que este tenha sido o favorito do Paulo. De fato, nada deixou a desejar para um bom vinho do Porto, o Marsala, que eu não conhecia. Virei fã também. Não sabia que aquela ilha de 5.000 anos de idade, além de ser o berço da máfia italiana e de belas paisagens, fazia um vinho fortificado tão saboroso.
Terminamos com um par de taças de Marsala - mais ou menos isso! - nossa noite. E me lembro de que debatemos a questão da familiaridade com a comida e a importância da harmonização - não apenas de bebidas, mas dos ingredientes certos, na sequência certa, na medida certa. "Quando alguém diz que não gosta de alguma coisa, quero saber em que contexto esta pessoa comeu aquilo. Os alimentos, se são alimentos, devem ser bons. O nosso paladar é que vai se encaixar neles", ponderou o sommelier, despertando algumas reflexões ébrias."
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