Para quem gosta de conhecer o vinho saiu, finalmente, uma obra de leitura obrigatória: a tradução de “Le goût du vin”, de Émile Peynaud (O gosto do vinho, São Paulo, Martins Fontes, 2010).
Até o século XVIII, os livros sobre o vinho versavam sobre o plantio da vinha, sobre os usos medicinais do fermentado e sobre sua elaboração, raramente dedicando-se a apreciação da bebida. Apenas em 1793 o termo “provador” foi designado pelos lexicógrafos franceses (1) como “aquele cujo ofício é provar vinhos”, e a palavra “degustar” só surgiu nos textos franceses em 1813. Na literatura do século XIX houve um “quase-silêncio” intelectual sobre o vinho, onde ele figura sempre como um acompanhamento ou complemento do comer, tornando-o, assim, tributário da literatura gastronômica mais geral até que, por volta de 1970, com o surgimento da Revue dês Vins de France, os dois discursos se dissociam. Até o surgimento do livro de Peynaud, em 1980, o vinho estava subsumido nos estudos de alcoolização (2), sem “dignidade” como tema cultural. Mas Peynaud introduz, finalmente, a abordagem sensorial e abre a possibilidade da intelectualização que faz emergir o moderno discurso enológico francês: tradição, vínculo com o lugar, distinção, estética, autenticidade, artesanato e região.
Um dos capítulos mais interessantes é aquele sobre “As palavras do vinho”. Nele, analisa a linguagem dos degustadores e a semântica da degustação. “O cronista que fala de vinhos ‘engraçados, divertidos, elegantes, espirituosos, impactantes, maliciosos’ (e seria fácil aumentar insignificância e ele próprio merece alguns desses adjetivos” (3). É o capítulo que analisa o que incomoda não poucas pessoas: a verborragia. E como faz essa análise? A partir das técnicas de análise de texto, especialmente da lingüística de corpus, quando aparece o abuso de certos termos – como “frutas vermelhas e negras” – “Essas observações de especialistas da semântica podem surpreender, desamparar o degustador habitual; elas têm o grande mérito de sensibilizá-lo para o uso correto de um bom vocabulário, claro, útil e compreensível para todos”.
Para Peynaud, aquele que cria uma ficção no terreno da linguagem é um pseudo-poeta que constrói um vinho literário, que não existe. Para quem simplesmente quer se informar sobre escolhas a fazer, ele não ajuda, só atrapalha.
1 O primeiro livro a tentar analisar a ciência da degustação foi provavelmente “The History of Ancient and Modern Wines” escrito em 1824 pelo Dr. Alexander Henderson. A obra “Études sur le vin” de Louis Pasteur, publicada em 1866, foi de grande importância. Esta publicação científica, ao explicar a fermentação alcoólica e o papel do oxigênio na degradação dos vinhos, suscitou uma vontade maior de compreender a bebida.
2 “Bebida, abstinência e temperança - na história antiga e moderna” (São Paulo, editora SENAC, 2010) de Henrique Carneiro, professor da USP, faz uma análise da história moral da embriaguez, baseada em referências da tradição ocidental e atitudes sociais diante desse estado especial. O autor faz um percurso histórico sobre as formas culturais de ingestão, das práticas, dos atos e gestos diante do álcool.
3 Extraído do prefácio: “ Os bons vinhos incitam à sobriedade, sendo o alcoolismo a punição do mal beber. (…) Eu queria que este livro vos ensinasse também a falar do vinho. Beber vinho não é um prazer solitário, mas comunicativo. Se for bom, dizei-o da mesma maneira que mais vos apetecer. Há poucos prazeres capazes de tornar tão eloquentes como o de partilhar um copo. “
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